Fonte: Folha de São Paulo, Sábado, 24 de agosto de 2013, Caderno Mundo 1, página 26
Legado de Obama é oposto ao de Martin Luther King
Intelectual diz que ícone do movimento negro, cujo discurso 'eu tenho
um sonho' faz 50 anos, 'derramaria lágrimas' hoje
JOANA CUNHA
DE NOVA YORK
O legado do primeiro presidente
negro dos EUA será "o oposto do de Martin Luther King, que verteria
lágrimas ao ver Barack Obama pender para o lado da hegemonia", diz à Folha
o intelectual americano Cornel West, 60.
Uma das vozes negras mais
influentes do país, o professor da Universidade Princeton apoiou a primeira
campanha de Obama, mas, anos depois, o acusou de se tornar um fantoche de Wall
Street.
Se Luther King estivesse vivo,
não seria convidado para a homenagem aos 50 anos do discurso "Eu tenho um
sonho", afirma West, que também ficou de fora do evento, na quarta-feira.
Folha - "Eu tenho um sonho" completa 50 anos no dia 28. O que ficou do discurso?
Cornel West - Se Martin Luther
King estivesse vivo hoje, derramaria lágrimas ao observar a pobreza, os
salários estagnados e Wall Street no comando.
Mas muitos elogiaram o primeiro
discurso de Obama sobre raça, quando a absolvição do branco George Zimmerman,
que matou o negro Trayvon Martin, gerou protestos.
Muitos têm uma atitude protetora
com relação a Obama por causa da [emissora]Fox News e da direita, mas há uma
comunidade profundamente desapontada. Eles esperavam tão pouco dele que, quando
fez um discurso, muitos se entusiasmaram. Mas sabem que o foco não está nas
questões da classe trabalhadora e dos negros. O presidente, finalmente, disse
alguma coisa sobre a nova Jim Crow [conjunto de leis segregacionistas vigentes
nos EUA de 1876 a 1965]. As pesquisas mostram que ele está caindo na opinião
dos negros. Pioraram o emprego, a educação e o salário. Há uma face negra
simbólica na Casa Branca.
Que símbolo é este?
Obama ficará na história como o
presidente dos drones [aviões não tripulados]. E os negros sempre fomos mais
desconfiados de atitudes como matar inocentes dentro e fora do país. Obama
pendeu mais para o lado da hegemonia americana do que para aquilo pelo que
Luther King morreu. Não vamos nos esquecer do irmão David Miranda [namorado do
jornalista Glenn Greenwald], detido no aeroporto em Londres, pois também
sabemos o que é ter nossos direitos violados. Os legados de Luther King e Obama
são o oposto. Um é sigilo, falsidade e drones. O outro, sonhos, verdade e
justiça. Luther King disse I have a dream [Eu tenho um sonho], enquanto Obama
diz Eu tenho um drone'.
Obama disse que Ray Kelly [chefe
da polícia de Nova York] teria qualidades para chefiar a Segurança Interna. Mas
não é Kelly quem defende o "stop and frisk", a prática de revistar
pessoas tão criticada por ter como alvos negros e latinos?
É o que o presidente negro diz
sobre um chefe de polícia envolvido em um programa de discriminação racial, com
5 milhões de jovens negros e latinos sendo parados e revistados. A Justiça
agora chega à verdade, considerando a operação inconstitucional e coloca alguma
pressão. Mas essa discriminação é uma forma de criminalizar os negros,
especialmente os pobres, pois raça e classe são inseparáveis.
O senhor foi convidado para a homenagem aos 50 anos do discurso?
Ninguém me convidaria. Sou um
negro livre. Lá, você não vai ouvir ninguém falando de "drones", nem
de criminalidade em Wall Street e vigilância de cidadãos. Eles dizem coisas que
só parecem progressistas. Mas não serão críticos ao governo. Luther King morreu
falando de crimes do governo americano. O que importa sobre Edward Snowden e
Glenn Greenwald é que estão revelando não só mentiras, mas crimes do governo americano.
Luther King seria convidado?
Sem chances. Se fosse, seria
tirado do palco pois diria muitas verdades.
Como o sr. avalia a posição da Suprema Corte de ter derrubado uma parte da Lei do Direito ao Voto, de 1965, que era vista como uma proteção ao eleitorado negro?
É uma visão triste dos
conservadores da corte. Temos de continuar lutando, não só pelo direito ao
voto, mas também por ter alguém em quem votar, pois os dois partidos,
democratas e republicanos, estão ligados ao 1% dos bancos e grandes empresas.
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