sábado, 24 de julho de 2021

Negro Drama

 

Negro Drama

Racionais MC's

 

Negro drama

Entre o sucesso e a lama

Dinheiro, problemas,

Inveja, luxo, fama

 

Negro drama,

Cabelo crespo

E a pele escura

A ferida, a chaga

À procura da cura

 

Negro drama

Tenta ver

E não vê nada

A não ser uma estrela,

Longe, meio ofuscada

 

Sente o drama

O preço, a cobrança

No amor, no ódio

A insana vingança

 

Negro drama

Eu sei quem trama

E quem tá comigo

O trauma que eu carrego

Pra não ser mais um preto fodido

 

 

O drama da cadeia e favela

Túmulo, sangue

Sirene, choros e vela

 

Passageiro do Brasil

São Paulo

Agonia que sobrevivem

Em meio às honras e covardias

 

Periferias, vielas, cortiços

Você deve tá pensando

O que você tem a ver com isso?

 

Desde o início

Por ouro e prata

Olha quem morre

Então veja você quem mata

 

Recebe o mérito, a farda

Que pratica o mal

Me ver

Pobre, preso ou morto

Já é cultural

 

Histórias, registros

Escritos

Não é conto

Nem fábula

Lenda ou mito

 

Não foi sempre dito

Que preto não tem vez

Então, olha o castelo irmão

Foi você quem fez, cuzão

 

Eu sou irmão

Dos meus truta de batalha

Eu era a carne,

Agora sou a própria navalha

 

Tin-tin,

Um brinde pra mim

Sou exemplo de vitórias

Trajetos e glórias, glórias

 

O dinheiro tira um homem da miséria

Mas não pode arrancar

De dentro dele

A favela

 

São poucos que entram em campo pra vencer

A alma guarda

O que a mente tenta esquecer

 

Olho pra trás

Vejo a estrada que eu trilhei

Mó cota

Quem teve lado a lado

E quem só ficou na bota

 

Entre as frases

Fases e várias etapas

Do quem é quem,

Dos mano e das mina fraca

 

Negro drama de estilo

Pra ser

E se for,

Tem que ser

Se temer é milho

 

Entre o gatilho e a tempestade

Sempre a provar

Que sou homem e não um covarde

 

Que Deus me guarde

Pois eu sei

Que ele não é neutro

Vigia os rico

Mas ama os que vem do gueto

 

Eu visto preto

Por dentro e por fora

Guerreiro

Poeta, entre o tempo e a memória

 

Ora

Nessa história

Vejo dólar

E vários quilates

Falo pro mano

Que não morra e também não mate

 

O tic-tac

Não espera, veja o ponteiro

Essa estrada é venenosa

E cheia de morteiro

 

Pesadelo

É um elogio

Pra quem vive na guerra

A paz nunca existiu

 

Num clima quente

A minha gente sua frio

Vi um pretinho

Seu caderno era um fuzil

Um fuzil

 

Negro drama

 

Crime, futebol, música, caraio

Eu também não consegui fugir disso aí

Eu sou mais um

Forrest Gump é mato

Eu prefiro contar uma história real

Vou contar a minha

 

Daria um filme

Uma negra

E uma criança nos braços

Solitária na floresta

De concreto e aço

 

Veja

Olha outra vez

O rosto na multidão

A multidão é um monstro

Sem rosto e coração

 

 

Ei, São Paulo

Terra de arranha-céu

A garoa rasga a carne

É a Torre de Babel

 

Família brasileira

Dois contra o mundo

Mãe solteira

De um promissor

Vagabundo

 

Luz, câmera e ação

Gravando a cena vai

Um bastardo

Mais um filho pardo, sem pai

 

Ei, senhor de engenho

Eu sei bem quem você é

Sozinho cê num guenta, sozinho

Cê num entra a pé

 

Cê disse que era bom

E a favela ouviu

Lá também tem

Whisky, Red Bull

Tênis Nike e fuzil

 

Admito

Seus carro é bonito

É, eu não sei fazê

Internet, videocassete

Os carro loco

 

Atrasado

Eu tô um pouco sim

Tô, eu acho

Só que tem que

 

Seu jogo é sujo

E eu não me encaixo

Eu sou problema de montão

De Carnaval a Carnaval

Eu vim da selva

Sou leão

Sou demais pro seu quintal

 

Problema com escola

Eu tenho mil, mil fitas

Inacreditável, mas seu filho me imita

No meio de vocês

Ele é o mais esperto

Ginga e fala gíria

Gíria não, dialeto

 

Esse não é mais seu

Ó, subiu

Entrei pelo seu rádio

Tomei, cê nem viu

Nóis é isso ou aquilo

 

O quê?

Cê não dizia?

Seu filho quer ser preto,

Rááá

Que ironia

 

Cola o pôster do 2Pac aí

Que tal?

Que cê diz?

Sente o negro drama

Vai

Tenta ser feliz

 

Ei bacana

Quem te fez tão bom assim?

O que cê deu

O que cê faz

O que cê fez por mim?

 

Eu recebi seu tic

Quer dizer kit

De esgoto a céu aberto

E parede madeirite

 

De vergonha eu não morri

To firmão

Eis-me aqui

 

Você, não

Cê não passa

Quando o mar vermelho abrir

 

Eu sou o mano

Homem duro

Do gueto, Brown

Obá

 

Aquele louco que não pode errar

Aquele que você odeia

Amar nesse instante

Pele parda

Ouço funk

E de onde vem

Os diamantes

Da lama

 

Valeu mãe

Negro drama

Drama, drama, drama

 

Aê, na época dos barracos de pau lá na Pedreira, onde vocês tavam?

Que que vocês deram por mim?

Que que vocês fizeram por mim?

Agora tá de olho no dinheiro que eu ganho

Agora tá de olho no carro que eu dirijo

Demorou, eu quero é mais

Eu quero até sua alma

Aí, o rap fez eu ser o que sou

 

Ice Blue, Edy Rock e KL Jay e toda a família

E toda geração que faz o rap

A geração que revolucionou

A geração que vai revolucionar

Anos 90, Século 21

É desse jeito

 

Aê, você sai do gueto, mas o gueto nunca sai de você, morou irmão?

Você tá dirigindo um carro

O mundo todo tá de olho em você, morou?

Sabe por quê?

Pela sua origem, morou irmão?

É desse jeito que você vive

É o negro drama

Eu não li, eu não assisti

Eu vivo o negro drama, eu sou o negro drama

Eu sou o fruto do negro drama

Aí Dona Ana, sem palavras, a senhora é uma rainha, rainha

 

Mas aê, se tiver que voltar pra favela

Eu vou voltar de cabeça erguida

Porque assim é que é

Renascendo das cinzas

Firme e forte, guerreiro de fé

 

Vagabundo nato!

Haiti

 

Haiti

Caetano Veloso, Gilberto Gil

 

Quando você for convidado pra subir no adro

Da Fundação Casa de Jorge Amado

Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos

Dando porrada na nuca de malandros pretos

De ladrões mulatos e outros quase brancos

Tratados como pretos

Só pra mostrar aos outros quase pretos

(E são quase todos pretos)

Como é que pretos, pobres e mulatos

E quase brancos, quase pretos de tão pobres são tratados

 

E não importa se olhos do mundo inteiro possam

Estar por um momento voltados para o largo

Onde os escravos eram castigados

E hoje um batuque, um batuque

Com a pureza de meninos uniformizados de escola secundária

Em dia de parada

E a grandeza épica de um povo em formação

Nos atrai, nos deslumbra e estimula

Não importa nada

Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico

Nem o disco de Paul Simon

Ninguém, ninguém é cidadão

Se você for ver a festa do Pelô, E se você não for

 

Pense no Haiti, reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui

  

E na TV se você vir um deputado em pânico

Mal dissimulado

Diante de qualquer, mas qualquer mesmo

Qualquer, qualquer

Plano de educação

Que pareça fácil

Que pareça fácil e rápido

E vá representar uma ameaça de democratização

Do ensino de primeiro grau

E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital

E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto

E nenhum no marginal

E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual

Notar um homem mijando na esquina da rua

Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon

 

E ao ouvir o silêncio sorridente de São Paulo

Diante da chacina

111 presos indefesos, mas presos são quase todos pretos

Ou quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres

E pobres são como podres e todos sabem como se tratam os pretos

E quando você for dar uma volta no Caribe

E quando for trepar sem camisinha

E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba

 

Pense no Haiti, reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui

 

Compositores: Caetano Veloso / Gilbert Gil

Noites do Norte

 

Noites do Norte

Joaquim Nabuco (1849-1910)

Caetano Veloso

 

A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.

Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade;

seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou;

ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;

insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte...

É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte