“Eu fiz A Mão da Limpeza para
repor certas coisas no lugar e remendar um preconceito histórico contra os
negros; para responder, no mesmo tom, um desaforo – o velho ditado: ‘Negro,
quando não suja na entrada, suja na saída.’
“Ocorriam-me imagens de lavadeiras
lavando roupa nas beiras de rios, inúmeros, por que eu passei no interior da
Bahia e outros lugares; de cozinheiras negras, jovens e velhas, espalhadas
pelas cozinhas do Brasil; de várias faxineiras limpando as casas. Ocorria-me
com muita nitidez o quão acionados e quão importantes são os negros para o
trabalho de limpeza em geral que é feito na vida, e também com tamanha nitidez
o quão sujadores são exatamente os que têm mais recursos, os mais ricos, os
mais beneficiados da sociedade que, em sua grande maioria, correspondem à
classe mais clara, a faixa mais branca.
“Quer dizer, os negros são tão
maciçamente empenhados na função da limpeza da comunidade e acabam sendo
acusados de ser os sujões. No fundo, o provérbio tem uma conotação nitidamente
moral, além de física; o que se tenta considerar como sujo no negro é sua
existência, sua pessoa, sua condição humana. Nesse sentido é muito mais
terrível, e a música nem alcança a dimensão da crítica disso; ela apenas toca
nisso.
“Mas jogando a sujeira como algo
produzido preferencialmente pelos brancos, ela faz a limpeza da nódoa que
quiseram impor aos negros. E deixa implícita também uma condenação moral aos
brancos. Ou seja: ‘Sujos na verdade são vocês, de corpo e alma; pelo menos,
mais sujos que os negros vocês são. Há muito mais sujeira a apurar ao longo do
processo da civilização de vocês do que da nossa.’ É o que a música diz. E ela
diz o que tem a dizer, com contundência e eficácia.”